A comunidade Cité Soleil é onde fica o hospital onde vou trabalhar e a casa onde vou morar. É a maior favela do Haiti, comporta entre 200 e 400 mil pessoas. Na verdade, é a maior favela do hemisfério norte. Suas primeiras moradias foram instaladas em 1958, com apenas 52 famílias.
Nos anos 80 houve uma explosão demográfica devido ao êxodo dos camponeses que ficaram sem suas únicas posses: porcos. No começo dessa década houve uma explosão de gripe suína na vizinha República Dominicana. Com medo de que a doença cruzasse a fronteira do Haiti, o governo do país juntamente com pressão do USAid fizeram uma ampla campanha de exterminação do porco de origem haitiana, conhecido como Porco Créole, mesmo se não houvessem ainda provas de que estivessem contaminados. O governo americano prometeu recompensar aqueles que matassem seus animais com porcos americanos, o que foi feito. Acontece que o porco americano mostrou-se fraco e caro e não se adaptou às condições do Haiti. Com isso, ocorreu uma imensa migração dos camponeses, que ficaram sem nada, dos campos pra cidades à procura de empregos. Esse evento do extermínio de porcos foi tão significativo que até mesmo a culinária e os rituais religiosos sofreram mudanças. O suíno que era parte integral da dieta e culinária haitiana desapareceu, substituídos pelo frango americano. O porco Créole que era também usado havia centenas de anos das cerimônias religiosas (sacrifícios e banquetes) não é mais visto nessas ocasiões.
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Cité Soleil, Porto Príncipe |
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Os Chimères, gangs armadas da Cité Soleil (foto de 2004) |
Em um segundo momento da história do Haiti houve uma nova corrente migratória em direção à Cité Soleil nos anos 80/90. Com Baby Doc a implantar o neoliberalismo no país, algumas indústrias começaram a surgir e a comunidade de Cité Soleil começou a ser ocupada por seus funcionários. Tudo muito bem até que em 1991 o presidente Aristide sofre um golpe de estado e os produtos haitianos passam a ser boicotados. Foi a falência das poucas indústrias instaladas no país. Os antes assalariados moradores de Cité Soleil passam a ser desempregados, que deu origem a uma geração desesperada, subnutrida, analfabeta e violenta.
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Documentário sobre os Chimères |
A situação se agravou nos próximos 10 anos e em 2004 Cité Soleil era dominada por mais de 30 gangs. Era um território impenetrável com níveis de violência jamais vistos. Em 2004 a comunidade foi apontada pela ONU como o lugar mais violento do planeta. As milícias armadas, muitas vezes patrocinadas por políticos tomavam conta do local com braço de ferro. Modelo parecido com o que vemos nas favelas brasileiras. Foi em Cité Soleil que nasceram os famigerados Chimères (ou fantasmas), gangs armadas patrocinadas contestavelmente por Aristide. Os Chimères operavam com armas, torturas e caos. Foram inspiração inclusive para um filme/documentário chamado "Ghosts of Cité Soleil" que ganhou alguns prêmios por aí. Eu pessoalmente não gostei muito do filme, por não entender qual parte era realidade e qual era ficção, mas para quem quer entender o contexto é muito prestativo. Entre 2004 e 2007 a MINUSTAH, através de diversas incursões armadas na comunidade, conseguiu prender ou matar os principais líderes das gangs e consequentemente desmembrá-las.
Hoje em dia, Cité Soleil ainda sofre com a violência gerada por uma população miserável, analfabeta e sem perspectivas. Embora essa violência seja muito menor do que os níveis observados entre 2004 e 2007, a comunidade ainda é um campo minado para as tropas da MINUSTAH e abriga os principais cativeiros de sequestro de Porto Príncipe.
O hospital onde trabalharei atende principalmente os moradores dessa comunidade, que precisam de todo tipo de assistência médica. Após o terremoto muita gente passou a viver em barracas improvisadas de lona, onde permanecem até hoje. Esse tipo de aglomeração (cerca de 350 mil pessoas vivem assim no Haiti) gera um série de complicações: doenças por falta de saneamento, falta de privacidade, violência sexual, queimaduras (muitas casos de incêndio de barracas ao cozinhar) e fácil propagação de epidemias como a cólera.
Curioso notar como Brasil e Haiti tem histórias similares em suas misérias.
Ótimo relato, Fábio. Como você bem disse, não há uma resposta simples para ajudar o país.
ResponderExcluirÉ verdade Marcelo, são muitas variáveis diferentes num contexto extremamente complexo. Resposta simples pro Haiti não há.
ResponderExcluirFábio, parabéns pelo blog! Eu queria muito ter notícias e poder acompanhar, de alguma forma, sua vivência nesse universo tão distante para nós!E através de seus relatos ampliar as minhas percepções rasas sobre tantas questões!
ResponderExcluirA Angela me falou do blog e pretendo manter contato sempre! Fotos belíssimas! Texto ótimo para ler e pensar, pensar e pensar!
Grande beijo e que você seja muito bem sucedido! Minha admiração só aumenta!
da prima Ju
Valeu Juju! A admiração é recíproca! Grande beijo
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