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15 de maio de 2013

Contexto político do Haiti

Admito que eu sabia pouco da história desse país, não muito mais do que saía e sai nas trágicas manchetes que costumam fazer referência ao Haiti. Empenhei-me em estuda-la recentemente e fiquei surpreso com o significado que o país tem no contexto histórico mundial, principalmente no que se refere à descolonização, diáspora negra, abolicionismo e mesmo iluminismo. Além disso, o país é um excelente estudo de caso no que se refere às intervenções de ajuda internacional e os tiros que saem pela culatra dessas armas carregadas de “boas intenções”...

A ilha caribenha de São Domingos que hoje é separada por um resoluto traçado imaginário que distingue Haiti da República Dominicana foi no passado um território único chamado pelos colonizadores espanhóis de Isla de Hispaniola. Era habitado havia mais de 7 mil anos por uma população nativa que foi dizimada com a chegada de Cristóvão Colombo em 1492. Em algumas décadas após a chegada dos espanhóis já não havia sequer um dos 100mil nativos que estivesse de pé, vítimas de escravidão brutal, maus tratos ou de doenças europeias: o extermínio ameríndio padrão por parte dos colonizadores europeus na época das Grandes Navegações. Mas nada que a conveniente importação de mão de obra africana não resolvesse. Com a extinção da população aborígene, começou a segunda grande atrocidade do Haiti, a utilização de mão de obra negra escrava em grande escala, que veio a ser um fator determinante nos eventos posteriormente ocorridos no país.


Isla de Hispaniola (mapa feito em Veneza datado de 1576)
Nos próximos 200 anos os espanhóis exploravam tranquilamente as riquezas minerais da Isla Hispaniola enquanto os franceses ficaram de olho na parte oeste da ilha, que estava meio abandonada por ser pobre em minérios. Aos poucos foram ocupando uma terrinha aqui e outra acolá até que em 1697 o então rei da Espanha (por acaso sobrinho de Louis XIV) reconhece o terço ocidental da ilha como francês e traça uma linha imaginária no mapa: ao leste território espanhol e a oeste francês. Esses batizam o novo território de Saint Domingue. 


Saint Domingue (mapa de 1764)
Nos próximos 100 anos a nova colônia vê 30 mil franceses desembarcarem em suas terras. Com os lucros gigantescos provindo das plantações de cana-de-açúcar e índigo, Saint Domingue torna-se por volta do ano de 1790 a colônia francesa mais rica das Américas. A população de escravos negros é então de 400 mil pessoas, mais de 10 vezes a população branca.

Lembrando que nesse período espalhavam-se os ideais iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade na Europa. Essas ideias revolucionárias chegaram rapidamente às colônias americanas e caribenhas. Os direitos universais eram declarados em Paris e nascia a Revolução Francesa. A população mestiça e negra de Saint Domingue logo se apressou a enviar um pedido à Paris para que também instaurasse direitos raciais na ilha (ainda escravos, porém com mais direitos), o que lhes foi concedido oficialmente, causando revolta por parte dos brancos donos de plantações. Os mesmos não só ignoraram a nova ordem enviada por Paris como também endureceram o tratamento dos escravos em Saint Domingue como resposta à tamanha "ousadia". Era tudo que faltava para o barril explodir.

A francesada apanhou sem dó
Toussaint Louverture
Em 1791 um grupo de 1000 escravos começou uma revolta, executando seus patrões brancos e queimando fazendas e plantações. Rapidamente juntaram-se a eles outros milhares de negros e mestiços e em 3 dias praticamente toda a infraestrutura da lucrativa ilha estava queimada ou pilhada. Esse foi o início da revolução que sofreu várias reviravoltas durante alguns anos até que em 1794 a França de Robespierre abole a escravidão e todos os negros das colônias tornam-se cidadãos iguais perante a lei. Neste período o líder da revolução negra, chamado Toussaint Louverture, torna-se um general do mais alto cargo, na época o negro com a maior patente militar em todo o mundo. Esse camarada é um  herói nacional haitiano.

As coisas voltam a se agitar em 1802 quando Napoleão resolve voltar no tempo e torna-se determinado a restaurar a escravidão nas colônias caribenhas. A marinha de Bonaparte invade Saint Domingue com a maior armada já formada pela França, prende Louverture e restaura a “ordem branca” na ilha, embora sem restaurar a escravidão, ainda... A ilha passa a funcionar dentro da “normalidade” até que a notícia se espalha de que Napoleão acabava de retomar a escravidão na até-então-livre ilha vizinha de Guadaloupe. Os negros de Saint Domingue então começaram entender as verdadeiras intenções dos brancos e se revoltaram de novo, dessa vez de uma maneira muito mais violenta e definitiva. Na ausência de Louverture, um sujeito  chamado Dessaline toma a liderança e começa o massacre de todos os brancos de Saint Domingue. Foi uma limpeza racial radical que deu origem finalmente à República do Haiti, primeira república fundada por negros escravos no mundo. Foi uma conquista sangrenta, dramática e pioneira. É como se Zumbi dos Palmares expulsasse todos os brancos do Brasil e instaurasse um país negro independente (com permissão poética).

Dessa vez não sobrou um francês pra contar a história

A revolução haitiana foi pioneira no mundo em três aspectos: foi anticolonialista, abolicionista e republicana. Isso em 1804, 18 anos antes de Dom Pedro I gritar “Independência ou Morte!”, 84 anos antes de a princesa Izabel abolir os escravos brasileiros e 85 anos antes da proclamação da nossa república brasileira.

Entretanto, desde então, a vida do Haiti não tem sido fácil. Nos anos que sucederam a conquista da independência, os haitianos viviam sob medo constante de uma nova invasão por parte da França, que engoliu muito seco a perda de sua mais rica colônia. O pesadelo se tornou realidade quando em 1825 a marinha francesa, com 14 navios de guerra, volta a invadir o país. Ameaçam restaurar a escravidão e prender os responsáveis pela expulsão dos brancos 20 anos antes e por aí vai.... a não ser que.... o Haiti pagasse uma “indenização” (pagamento de resgate) no valor de 90 milhões de francos. Corrigidos para os valores atuais, equivale a mais de USD 21 bilhões. Os haitianos pagaram o que pediram para que fossem embora e para evitar uma nova invasão francesa. Essa dívida vai consumir os cofres públicos do país nos próximos 200 anos de maneira tão nefasta que vai ser uma das principais causas da falência do estado haitiano até hoje. Atualmente há um movimento que pretende reaver esse dinheiro da França, pleiteado pelo presidente Aristide em 2003, apoiado por vários advogados internacionais... Esse valor é equivalente a 60 anos de arrecadação de impostos haitianos. Viria a calhar se a França devolvesse esse dinheiro extorquido, pra dizer o mínimo.

Os franceses por sua parte dizem essa página do passado já foi virada que não faria sentido devolver a quantia. Curioso que a página parece ter virado para a França, que certamente fez bom uso do dinheiro. Pros haitianos, entretanto, houve pouca ou nenhuma melhora na qualidade de vida nos últimos dois séculos.


Todavia, esse não foi o único fator que enforcou o desenvolvimento do Haiti.    

Após a independência do país, houve uma sucessão de governantes corruptos e pouco comprometidos com os problemas do Haiti. Houve inclusive um deles que resolveu transformar a república em império em 1849. O imperador Fasutin I governou por 10 anos antes de também ser destituído do poder. A instabilidade política prolongada e os sucessivos golpes de estado agravaram ainda mais a economia haitiana.

Ao ver um estado vizinho em total colapso, os Estados Unidos resolvem ocupar o Haiti em 1915. Restauraram alguma ordem social e institucional, mas trouxeram de volta também um racismo exacerbado que os haitianos já não conheciam havia mais de 100 anos. Os americanos deixaram o país quase 20 anos depois em 1937 deixando como herança um novo exército haitiano que se tornaria um importante fator de instabilidade política a partir de então. Essa não seria a última intervenção americana no Haiti.

O exército haitiano formado pelos americanos aplica diferentes golpes de estados os próximos 20 anos. Ninguém no Haiti confia nos homens de farda: nem população nem classe política.

Os americanos treinam o novo exército do Haiti
É então em 1957 que entra no poder François Duvalier, mais conhecido como “Papa Doc”. O histórico que o exército haitiano tinha torna o presidente paranoico. Seu temor de um golpe de estado iminente é tanta que ele desarma o exército regular e forma um exército para-militar de “voluntários” apelidados Tontons Macoutes. 


Os Tontons-Macoutes
Nessa época a Guerra Fria está a todo vapor: EUA e URSS fazem de tudo e mais um pouco para persuadirem os outros países a abraçarem as causas capitalistas e comunistas, respectivamente. Com Cuba no quintal de casa já causando problemas demais, o EUA resolve patrocinar por debaixo dos panos o governo de Papa Doc, oposicionista declarado dos valores comunistas. Os americanos enviam então agentes da CIA pra treinar os Tontons Macoutes que se tornam uma milícia extremamente violenta, executando e torturando milhares de opositores ao regime de Papa Doc. Sem exército nem polícia regulares, o Haiti se transformou numa verdadeira república de gangsters encabeçada pelo seu presidente (que carregava uma metralhadora pessoal consigo por toda parte). 

"Papa Doc" e sua metralhadora de estimação
Papa Doc morre em 1971 deixando um rastro de horror e sangue e é então substituído pelo seu filho de 19 anos de idade Jean-Claude Duvalier ou “Baby Doc”. Esse promete uma mão mais leve e um maior liberalismo que seu pai, promessas essas que se mostraram vazias logo nos primeiros anos de governo. Depois de 15 anos como chefe de estado, o Haiti encontra-se numa situação desesperadora, com  inflação descontrolada, fome e repressão militar. A população começa a se revoltar e em 1986 Baby Doc foge do país num avião da US Air Force em direção à França, onde passa a ser um exilado. Hoje é sabido que na fuga ele carregou consigo uma quantia equivalente a USD 800 milhões, roubados dos cofres haitianos.

Papa e Baby Doc
Após a queda de Baby Doc e o fim de uma ditadura brutal dos Duvaliers que durou 29 anos, o presidente Jean-Bertrand Aristide, um padre, é eleito democraticamente em 1990.

Extremamente popular e flertando com ideias esquerdistas o presidente Aristide cai rapidamente em desagrado do presidente George Bush pai. Após apenas 7 meses de governo, o Haiti sofre um golpe de estado com lobby americano e Aristide se exila. Nos próximos 3 anos a CIA patrocina e treina as milícias locais, que reprimem com fogo os ativistas sindicais e simpatizantes de Aristide. 

Em 1994, um Bill Clinton querendo corrigir os erros republicanos do passado, apoia o retorno de Aristide pro Haiti, que governa por mais 1 ano. Não podendo ser eleito presidente duas vezes consecutivas, as próximas eleições são vencidas pelo seu braço direito Préval. Após 4 anos de governo, há novas eleições e mais uma vez Aristide se candidata e ganha o páreo por uma assustadora margem de mais de 90% dos votos.  


Estamos nos anos 2000 o George Bush filho governa os EUA. Esse já sem paciência com seus vizinhos esquerdistas, como Chavez e Castro, resolve copiar o papai. Impõe um embargo comercial pesadíssimo ao Haiti, já um dos mais pobres países do mundo. Nos próximos 3 anos do novo mandato do presidente Aristide, toda a política americana (através de seus lobistas industriais que usufruem da mão de obra barata haitiana) é dedicada fervorosamente a aniquilar o partido do presidente através de embargos e falsas acusações.
Aristide: eleito democraticamente duas vezes e deposto por intervenção externa também 2 vezes, por defender políticas sociais contrárias aos lobistas industriais

Um dos maiores absurdos e injustiças da atualidade, o governo americano prometeu uma fundo no valor de USD 850 milhões para ajudar o Haiti a sair da pobreza. Esse dinheiro nunca foi visto pelo governo haitiano, ele foi todo repassado para ONGs instaladas no país. ONGs não pagam salário da polícia, não constroem escolas nem estradas. Ainda assim, o Haiti foi obrigado a pagar os juros desse empréstimo que nunca tocou. Como se não bastasse, os lobistas americanos gritavam pro mundo inteiro ouvir que Aristide era um administrador incompetente por não conseguir organizar o estado, “apesar de ter recebido USD 850 milhões” de ajuda. Muitas ONGs internacionais hoje são mal vistas no Haiti, por serem “concorrentes” do estado na arrecadação de fundos de ajuda internacional. Malgrado o embargo, juros cobrados injustamente e de todas as tentativas de Bush filho de acabar com a reputação do presidente, Aristide continuava com imensa popularidade entre os haitianos pelo pouco que conseguiu construir com o paupérrimo caixa do país. 

Charge em créole ironizando a "simpatia"
das tropas da ONU no Haiti
Ao ver que suas táticas não estava funcionando, os americanos partiram para uma estratégia menos “sutil”: em 2004, na ocasião de uma onda de protestos nas ruas de Porto Príncipe, obrigam o presidente Aristide a embarcar num avião da US Air Force. Dentro da aeronave, durante 20 horas no ar, agentes da CIA “persuadem” o presidente a assinar a renúncia. Trata-se pura e simplesmente de um sequestro. Aristide se exila na África do Sul.

Esse evento desperta um caos popular nas ruas de Porto Príncipe e de todo o Haiti. Uma verdadeira guerra urbana se instaura, com os famosos “chimères” (grupo armado simpatizantes do presidente Aristide) aterrorizando a população. Entra então a missão da ONU para restaurar a ordem no país, missão batizada de MINUSTAH (Missão das Nações Unidas Para a Estabilização do Haiti), comandada pelo exército brasileiro.

Novas eleições são organizadas em 2006 onde o presidente Préval é eleito pela segunda vez num sufrágio recheado de fraudes e dúvidas, mas finalmente aceito pela comunidade internacional legitimado pelo apoio popular ao novo presidente.

Em 2010, com o terremoto que destruiu o que restava do Haiti (do qual falarei com mais detalhes num próximo post), duas figuras políticas de peso retornam de seus exílios ao Haiti, sem que ninguém tenha certeza de suas intenções: Baby Doc e Aristide.


Baby Doc volta ao Haiti depois de 25 anos de exílio na França. Já não tem mais tanta cara de "baby"


Arisitide volta à Porto Príncipe após 7 anos de exílio na África do Sul

Em 2011, com todo o caos pós-terremoto, acontecem novas eleições presidenciais que se passam com relativa calma e transparência. O ex-cantor popular Sweet Micky e atual presidente do Haiti (agora respeitosamente chamado de Michel Martelly) tem ideias de direita e é simpatizante dos golpistas de 1991. Tem muito trabalho a fazer num país que precisa ser inteiro reconstruído e com uma população impaciente.


As diferentes facetas de Sweet Micky, atual presidente do Haiti
Como se pode notar, a história do Haiti não é particularmente pacífica e estável. A escravidão dos chicotes e correntes foi substituída por dívidas e juros impagáveis, políticas externas intervencionistas de governos neoliberais paranoicos e uma cultura de instabilidade política e violência. A revolução de escravos que fundou um país em 1804, liderados por Toussaint Louverture,  ainda permanece um projeto inacabado.

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