Ontem,
3h30 da manhã. Acordamos todos com barulhos de tiros, bem próximos. Alguns
escutaram 3, outros 4. Eu só escutei 2. Devo ter acordado depois dos dois primeiros.
Já tínhamos escutados tiros antes, mas nunca tão próximos assim. Há muitos
barulhos que se parecem com um tiro, como uma manga que cai sobre um telhado de
metal, um escapamento de carro que estoura, até mesmo uma porta que bate e etc.
Mas o
barulho de tiro é distinto : é um barulho seco, alto e rápido. Você
simplesmente sabe que se trata de um tiro. Logo em seguida nenhum barulho,
nenhum grito, nem um carro, nada. A
morte aconteceu, levou uma vida e deixou pra
trás um sinistro silêncio, como se até os pássaros e os ventos soubessem
que naquele momento a única ação prudente é se calar. Um luto imediato se
instala morbidamente no perímetro onde o assassinato aconteceu.
Fomos saber mais pro fim da tarde o que tinha acontecido : as gangs de Cité Soleil estão em guerra interna. Uma confusa disputa de poder entre chefes de gang é o motivo do crescimento da violência. Essas gangs seguem a tradição haitiana onde o próprio estado patrocina esses bandos pra manter a ordem, e às vezes, pra criar a desordem (ler o post sobre o contexto politico do Haiti e sobre a Cité Soleil). A principal gang de Cité Soleil recebe ajuda financeira do sub-prefeito dessa região. Aprentemente outros chefes de gang querem tomar a liderança da comunidade pra ter acesso à essa grana.
O
que aconteceu ontem foi mais uma dessas histórias. Quatro pessoas foram feridas
a bala nessa mesma madrugada em diferentes locais do bairro, e os tiros que escutamos foram
do assassinato de um homem que aparentemente não tinha nada a ver com a guerra
das gangs, provavelmente morto por estar no lugar errado na hora errada. Era um
comerciante, já de mais idade. Tomou quatro tiros à queima roupa enquanto
caminhava, sem nenhuma razão aparente. Assassinar civis por nenhum motivo
também é uma tradição de Porto Principe. Isso gera instabilidade na comunidade
atacada, cria a impressão que seu lider não lhes provê proteção o suficiente.
Uma tática sinitra usada pelas gangs como forma de matar a facção rival de
dentro pra fora. Foi provavelmente o que aconteceu.
Curiosamente,
nessa mesma madrugada não tivemos entrada de baleados na sala de urgência. O
crime aconteceu bem próximo ao nosso hospital, porém a vítima foi levada pra
outro lugar pra ser tratado antes de sucumbir aos ferimentos. Provavelmente não
queriam manchar a rua do único hospital da comunidade com uma reputaçao violenta pra
evitar maior presença da MINUSTAH e polícia na area.
Escutar
um assassinato é uma experiência nova pra mim. Fez-me pensar como os filmes nos
levam a pensar que é algo tão banal tirar a vida de uma pessoa. Na vida real a
coisa pesa, há um clima sinistro no ar, uma angústia que é mistura de revolta,
tristeza, impotência e de uma incoerente paz. É difícil prever o que se passará
na nossa cabeça nessas horas inéditas da vida. Uma noite que vai ser dificil
esquecer.