.

25 de junho de 2013

Despertador


Ontem, 3h30 da manhã. Acordamos todos com barulhos de tiros, bem próximos. Alguns escutaram 3, outros 4. Eu só escutei 2. Devo ter acordado depois dos dois primeiros. Já tínhamos escutados tiros antes, mas nunca tão próximos assim. Há muitos barulhos que se parecem com um tiro, como uma manga que cai sobre um telhado de metal, um escapamento de carro que estoura, até mesmo uma porta que bate e etc. Mas o barulho de tiro é distinto : é um barulho seco, alto e rápido. Você simplesmente sabe que se trata de um tiro. Logo em seguida nenhum barulho, nenhum grito, nem um carro, nada. A morte aconteceu, levou uma vida e deixou pra  trás um sinistro silêncio, como se até os pássaros e os ventos soubessem que naquele momento a única ação prudente é se calar. Um luto imediato se instala morbidamente no perímetro onde o assassinato aconteceu.  

Fomos saber mais pro fim da tarde o que tinha acontecido : as gangs de Cité Soleil estão em guerra interna. Uma confusa disputa de poder entre chefes de gang é o motivo do crescimento da violência. Essas gangs seguem a tradição haitiana onde o próprio estado patrocina esses bandos pra manter a ordem, e às vezes, pra criar a desordem (ler o post sobre o contexto politico do Haiti e sobre a Cité Soleil). A principal gang de Cité Soleil recebe ajuda financeira do sub-prefeito dessa região. Aprentemente outros chefes de gang querem tomar a liderança da comunidade pra ter acesso à essa grana.

O que aconteceu ontem foi mais uma dessas histórias. Quatro pessoas foram feridas a bala nessa mesma madrugada em diferentes locais do bairro, e os tiros que escutamos foram do assassinato de um homem que aparentemente não tinha nada a ver com a guerra das gangs, provavelmente morto por estar no lugar errado na hora errada. Era um comerciante, já de mais idade. Tomou quatro tiros à queima roupa enquanto caminhava, sem nenhuma razão aparente. Assassinar civis por nenhum motivo também é uma tradição de Porto Principe. Isso gera instabilidade na comunidade atacada, cria a impressão que seu lider não lhes provê proteção o suficiente. Uma tática sinitra usada pelas gangs como forma de matar a facção rival de dentro pra fora. Foi provavelmente o que aconteceu.

Curiosamente, nessa mesma madrugada não tivemos entrada de baleados na sala de urgência. O crime aconteceu bem próximo ao nosso hospital, porém a vítima foi levada pra outro lugar pra ser tratado antes de sucumbir aos ferimentos. Provavelmente não queriam manchar a rua do único hospital da comunidade com uma reputaçao violenta pra evitar maior presença da MINUSTAH e polícia na area.

Escutar um assassinato é uma experiência nova pra mim. Fez-me pensar como os filmes nos levam a pensar que é algo tão banal tirar a vida de uma pessoa. Na vida real a coisa pesa, há um clima sinistro no ar, uma angústia que é mistura de revolta, tristeza, impotência e de uma incoerente paz. É difícil prever o que se passará na nossa cabeça nessas horas inéditas da vida. Uma noite que vai ser dificil esquecer.

22 de junho de 2013

Caso Bizarro no. 1

Como era de se esperar, os casos bizarros do hospital já começaram a surgir….

Essa semana uma acompanhante de uma paciente supostamente sofreu uma tentativa de estupro em um banheiro do hospital por um dos nossos empregados, um faxineiro. Segundo ela, que está grávida de 5 meses, o rapaz forçou a porta do banheiro e tentou agarrá-la à força. Ela conseguiu empurrá-lo e evitar o pior.

Um detalhe bem importante: ela é cunhada do chefe de uma das gangs da Cité Soleil. Ao sair do banheiro ela foi diretamente denunciar o ocorrido para um dos nossos controladores de armas da portaria, que também é seu parente. Esse veio nos procurar dizendo que o faxineiro tarado seria jurado de morte pelo chefe da gang. O índice de estupros nessa comunidade é altíssimo, e geralmente a justiça é feita com as proprias mãos.

Hora de parar tudo e acalmar a situação! A última coisa que precisamos é de um mais um assassinato, dentro do hospital então seria a catástrofe total, podendo mesmo levar ao fechamento do projeto todo.

Foi todo um dia recebendo testemunhas e ouvindo as diferentes partes. Ouvimos a vítima, o agressor, o controlador de armas e ontem recebemos o chefe de gang aqui no hospital. Deve ter uns 2 metros de altura, uns 150 Kg e um olhar de quem já fez coisas demais nessa vida pra sequer ter o trabalho de se arrepender. Só topou deixar a arma na portaria pois conhece o controlador de arma, que aliás é também nosso informante do que se passa nos bastidores de Cité Soleil…

A bizarrice não acaba por aí. Enquanto era preparado o processo de demissão do acusado (não é tão simples como parece, tem que haver prova concreta, com ocorrência policial e etc) o tal controlador de armas nos chamou. Disse que a vítima voltou atrás nas acusações e que na verdade o que tinha ocorrido é que o faxineiro tinha dado-lhe uma cantada de mau gosto e que ela, em fúria, tinha acusado-lhe de algo mais grave, o que condiz com o discurso de defesa do acusado. Pelo jeito nunca vamos saber o que ocorreu de verdade. Ela retirou as acusações e ficamos com as mãos atadas no processo demissional.  

O faxineiro foi suspenso temporariamente do serviço, pois apesar de ser uma falta menos grave, cantar pacientes e acompanhantes não é um comportamento nada aceitável. Está de cartão amarelo. Acontece é que a notícia dessa novela circulou, e as enfermeiras tomaram partido do faxineiro e a vítima da cantada passou a se sentir constrangida dentro do hospital. Mais reunião, mais apasiguamento dos ânimos, dessa vez com as enfermeiras. E olha que são 109 delas !

Tanta diplomacia parece ter funcionado até o momento : o faxineiro está suspenso em casa por uma semana, a acompanhante continua dentro no hospital sem sofrer constragimento das enfermeiras e o chefe de gang de Cité Soleil está tratando dos seus negocios cotidianos longe daqui, sem intenções sanguinárias até o momento… 

13 de junho de 2013

La Saline: a miséria em seu estado pleno


Porto Principe é uma cidade de contrastes extremos. Enquanto a maioria da população vive sem emprego e vende o almoço pra pagar a janta, existe uma elite com muita grana. O bairro de Pétionville, no alto da cidade, concentra a maior parte dessa turma endinheirada. Pelo mesmo motivo é o bairro onde há os bons restaurantes, bares e lojas. Embora não seja nenhum Leblon ou Jardins, ainda assim é alta classe. Se não fossem pelos seguranças armados com metralhadoras automáticas na porta de sorveterias, poderia-se até se pensar que se está numa cidade brasileira.

O índice de criminalidade é muito alto em Porto Príncipe e quem tem dinheiro tenta se proteger de toda forma. Os sequestros são comuns no Haiti, principalmente na épocas de férias de julho e agosto nos EUA e também durante o Natal. Isso porque os haitianos que moram nos EUA ou Canadá (que são muitos) costumam voltar pra cá pra visitar a família e trazer presentes. Os sequestradores ficam de olho em seus dólares.

Certa vez li um artigo que analisava pragmaticamente a relação da pobreza com a violência em diversos países : como poderia a Índia com tanta pobreza ser um país tão pacífico? E como poderia os EUA com tanto dinheiro ser tão violento? Depois de analisar vários países, a conclusão foi bem interessante: o principal fator gerador de violência em um determinado local não é a pobreza em si, mas a desigualdade social entre classes dentro de um mesmo país. Quanto mais desigual, mais violento. Isso explica um pouco do que se passa no Brasil, que apesar de estar crescendo e enriquecendo continua muito violento. Aqui Haiti não é diferente, e o caso é mais extremo.

Noutro dia, passando por uma avenida considerada « zona vermelha » onde somos proibidos de passar por ser muito violenta (mas o motorista estava com pressa e eu não tinha a menor ideia onde estava) passamos por uma das maiores e mais miseráveis favelas do mundo, La Saline. Eu me refiro à miséria no seu estado absoluto : feia, fétida, doente e sem final feliz. A pobreza não é novidade pra mim, morei 2 anos na África em um dos seus países mais pobres. Conheci mutos lugares pobres e ricos neste continente. Mas nada se iguala ao que eu vi em La Saline. São kilometros de barracas feitas de metal, entulhadas uma do lado das outras sob um calor sufocante de 40 graus. As ruelas são todas alagadas por 30 cm de água preta, escura como petróleo. Trata-se de água de esgoto parada e já estabelecida, como um córrego que já conhece seu caminho. Andar com os pés submersos neste esgoto é coisa do dia a dia de quem mora ali. A quantidade de moscas é algo inacreditável, enxerga-se de longe as nuvens nebulosas desses pequenos insetos por todo lugar. O cheiro tampouco passa desapercebido. Antes mesmo de chegarmos perto dessa comunidade e bem depois dela sente-se um cheiro forte e nauseante, que ocupa os pulmões, esmaga o coração e faz o cérebro se perguntar como qualquer ser humano pode passar todos os dias de sua vida nesse inferno absoluto e indomável. É uma miséria muito dificil de ser superada, é difícil imaginar como uma pessoa pode ser mais miserável nesse mundo do que aqueles que passam sua vida interia em La Saline.

Favela de La Saline
Não tirei fotos, não por uma questão ética (pois esse tipo de tragédia humana tem que ser divulgada), mas por simplesmente ter medo de perder minha câmera que provavelmente vale anos de alimentação/higiene pra um morador de lá. Ainda assim achei algumas fotos na internet desse local que condizem com o que vi. Se você pensa que deus é justo e que a natureza é perfeita, meu amgo, é porque tem algo muito errado com você. Nós somos talvez o mais imperfeito, injusto e sem compaixão de todos os animais.


Mercado de La Saline

Miséria total em La Saline

Em La Saline os moradores andam sobre o esgoto no dia-a-dia

O cheiro é insuportável


4 de junho de 2013

Primeiras impressões do Haiti


Cheguei há exatamente 4 dias no Haiti. Estou finalmente instalado na minha “casa” dos próximos  7 meses e fiz hoje a visita oficial ao hospital onde vou trabalhar.

Vivemos juntos uma equipe de 20 pessoas, de variadas nacionalidades. Cada um de nós temos um “chalé” de madeira bastante rústico. Ficam espalhados num terreno amplo anexo ao hospital. Temos uma quadra de vôlei e uma cozinha coletiva ampla onde o pessoal passa o fim de tarde. Não há água quente, mas o calor daqui dispensa qualquer chuveiro com resistência elétrica. Concidentemente há um outro brasileiro entre essas pessoas, chamadas por aqui de expatriados ou simplesmente “expats”. Uma coincidência mesmo, pois entre 30.000 pessoas, não há muitos brazucas na organização.  Dentre essas pessoas há médicos, enfermeiros, administradores, gestores de projeto e os responsáveis de logísticas.

Anexo a esse terreno onde moramos há o hospital. São muito impressionantes suas instalações e seu tamanho. É realmente um hospital de 1a linha, que atende principalmente as urgências mais complicadas, como queimados, acidentados e vítimas de violência. São 125 leitos atualmente, que recebem 3000 pacientes por mês. No mesmo local há um segundo hospital do mesmo tamanho que abre quando ocorrem as epidemias de cólera, que são recorrentes no Haiti. Pelo que me disseram é uma correria danada quando isso acontece, pois têm que praticamente dobrar a mão de obra, remédios, combustível e por aí vai.

Esse mês começa a temporada das chuvas e com isso devemos ter que abrir esse segundo hospital, pois a água acumulada na cidade que tem um péssimo saneamento propaga a cólera.

Quanto ao hospital há muitos queimados, a maioria deles devido a choques elétricos devido às instalações elétricas caóticas que fazem parte da paisagem dessa cidade. Há porém outros casos como explosões de tanques de combustível, de geradores e etc. Na semana passada um tanque explodiu no meio de um mercado popular e 30 pessoas tiveram que ser internadas por aqui.

Os próximos meses prometem, pois além dos casos “normais” e da muito provável epidemia de cólera que se anuncia há dois fatores que provavelmente farão o fluxo de pacientes aumentar. Primeiramente a estação de ciclones que começa esse mês. Já são 18 ciclones na região previstos pelos meteorologistas (já têm até nome e tudo), sendo que 9 deles com possibilidade de aumentarem e se transformarem em furacão. Temos uma casa construída em concreto, uma espécie de bunker, no nosso terreno onde devemos nos refugiar caso um deles resolva passar por Porto Príncipe. Pra completar o quadro, até o final do ano devem acontecer as eleições legislativas e os atores políticos começam a se movimentar da maneira haitiana: armando gangs das favelas que aterrorizam outras comunidades de partidos rivais. Esse final de semana já tivemos 11 feridos à bala que deram entrada no hospital, todos vindo da Cité Soleil. E nenhum deles pertencia à nenhuma gang, eram civis. A tática desses bandos armados é aterrorizar a população pra mostrar o quanto o chefe da gang rival (patrocinado pelo partido político rival) não tem a capacidade de protege-los. Assim funcionou a política haitiana nas últimas décadas e infelizmente continua assim.

O meu trabalho específico, que é controlar as finanças do hospital, será grande. Temos o maior orçamento de toda a organização, é de fato um hospital caro e que tende a ficar mais caro ainda com todas essas previsões...

Porém o Haiti não é só tragédia. Esse final de semana fomos à um bar com música ao vivo caribenha, acompanhada de rum! Nada mal. No domingo deu pra ir à praia, comer lagosta fresca, pescada na hora com uma vista sensacional! Acho que serei obrigado a repetir essa visita mais vezes!

Praia de Taina, Haiti

Come-se muito bem por aqui!


Os próximos meses prometem!